Tradução de um trecho de Κῦρου Ανάβασις, de Xenofonte, e um comentário sobre o exercício da tradução

LITERATURA

Pedro Fonseca Tenorio

7/10/20249 min read

"Conta-se ali Apolo, após ter vencido seu desafiante Mársyas numa disputa acerca da sabedoria [musical], ter lhe arrancado a pele e a lançado na gruta de onde brotam as nascentes do rio: por isso, o rio é chamado Mársyas. "

Apresento a tradução de uma passagem da obra Κῦρου Ανάβασις, ou A expedição de Ciro, de Xenofonte. O trecho foi escolhido por dispor dois aspectos interessantes: 1) o emprego de elementos em sua composição ricos de significado e que dão ensejo à análises posteriores, as quais, no entanto, farei em outros artigos: a) na descrição geral de Celainas, o uso do vocábulo εὐδαίμονα para adjetivar a cidade; b) o uso do vocábulo σοφία, sabedoria, no caso, quanto à música, para indicar o assunto acerca do qual a disputa, narrada concisamente no trecho, entre Apolo e Mársyas ocorreu; 2) a possibilidade de me permitir apresentar exemplos de tradução de texto grego para a língua portuguesa feitos segundo procedimentos diferentes.

Quanto ao primeiro item, um trecho desse tipo serve para exemplificar como o desenvolvimento do saber humano na Grécia foi concretizado através da expressão linguística do pensamento em língua grega. Os debates, os ensinamentos e as aulas, os escritos e tratados de Filosofia foram feitos em determinada época histórica em uma língua que contava com uma tradição linguística e literária estabelecida desde já havia alguns séculos. O vocabulário que não foi cunhado pelo próprio autor segundo suas necessidades, foi resgatado do uso ou corriqueiro ou literário da língua, aparecendo em textos artísticos, técnicos, pedagógicos, judiciais ou filosóficos.

Por exemplo, Aristóteles utiliza-se do vocábulo εὐδαίμονα (εὐδαίμων), junto a outros termos correlatos, como εὐδαιμονία, felicidade, em sua investigação na Ethica Nicomachea acerca do bem último para o ser humano. Xenofonte havia já utilizado, antes de Aristóteles, o vocábulo εὐδαίμονα (εὐδαίμων), que significa feliz, afortunado, próspero, rico, abundante, para apresentar as qualidades da cidade de Celainas. Na mesma Ethica Nicomachea, Aristóteles utiliza-se de σοφία para nomear a mais excelente virtude que o ser humano pode alcançar. No trecho de A expedição de Ciro, σοφία está sendo utilizado para indicar o saber específico da sabedoria musical, em torno do qual bateram-se o deus artista e o sátiro. Os dois termos εὐδαίμων e σοφία foram empregados em circunstâncias distintas mas acerca de assuntos congêneres, pelo que podem-se constatar a riqueza de possibilidades expressivas do idioma e a tradição de pensamento desenvolvida pela língua grega.

Quanto à tradução, as duas versões foram dispostas uma após a outra para que possam servir de exemplos de modos de traduzir-se um texto grego para a língua portuguesa segundo duas abordagens distintas. A primeira delas, apresenta uma tradução mais literal dos termos e das construções gregas. Vertido para o Português dessa maneira, o resultado pode soar como mais distante do espírito do texto original, apesar de se prender à literalidade textual, acarretando uma composição em língua portuguesa em expressões mais rebuscadas e, até mesmo, truncadas. A outra versão, pelo contrário, mesmo sendo mais desprendida da literalidade do texto original, resulta em um texto mais fluido, como o é a expressão dessa obra, e mais afeito às possibilidades da natureza da língua portuguesa para exprimir a arte de Xenofonte.

A obra Κῦρου Ανάβασις, de Xenofonte

Κῦρου Ανάβασις, ou A expedição de Ciro, narra a expedição do exército dos dez mil por entre o território persa, que ocorreu por volta de 401 a. C. Ciro, o governador da província da Lídia decidiu-se por destronar o irmão Artaxérxers e tomar para si o posto de príncipe e general da Pérsia. Comandando um exército de mercenários bárbaros e gregos, o sátrapa percorre o território hostil e inimigo, passando por cidades ilustres, por lugares pitorescos e sacros, até enfrentar seu irmão na batalha de Cunaxa. Morto Ciro pelas mãos de Artaxérxes, o exército, já combalido e estropiado, fica sem comandante e sem propósito militar e precisa retornar à casa. O próprio Xenofonte assume o comando do grupo e o conduz, finalmente, à costa de onde poderiam ver o caminho de volta pelo mar. A passagem que vem traduzida neste artigo encontra-se logo no início da aventura. O exército formado caminha em direção ao centro do império persa, parando em algumas cidades para descansar. Celainas é uma delas, umas das mais magníficas.

Xenofonte não foi o único a narrar a batalha fratricida. Um outro comandante e um médico persa também escreveram sobre os eventos. Mas também não foi somente esta a batalha de que Xenofonte participou, nem única esta obra escrita por ele. O perfil literário de Xenofonte não é monótono nem escasso. Ele escreveu sobre Sócrates, sobre a educação de Ciro, sobre economia e política e até sobre montaria. No pequeno trecho traduzido, podemos ver a descrição de Celainas, cuja vista se apresenta ao forasteiro apenas ele se aproxima da cidade majestosa do reino, com suas riquezas materiais e seu caráter aristocrático, abrigando um bosque paradisíaco e as fontes de dois rios, um dos quais nomeado pelo evento apolíneo ocorrido no local. Xenofonte não faz apenas um relato jornalístico da expedição, mas reflete sobre as ocorrências, sobre o caráter dos personagens, sobre o sentido de suas ações, sobre o ambiente em que ocorrem, sobre a natureza dos locais e dos eventos, imprimindo à obra seu estilo militar e aristocrático, racional e pio.

O trecho abaixo foi extraído da obra Κῦρου Ανάβασις, cujo texto grego foi estabelecido e editado por E. C. Marchant e publicado em Xenophontis Opera Omnia, Tomus III, na coleção Scriptorum Classicorum Bibliotheca Oxoniensis.

Tradução da passagem

Xenofonte, Κῦρου Ανάβασις, I.2, seções 7, 8 e 9, linhas 1 – 20:

ἐντεῦθεν ἐξελαύνει σταθμοὺς τρεῖς παρασάγγας εἴκοσιν εἰς Κελαινάς, τῆς Φρυγίας πόλιν οἰκουμένην, μεγάλην καὶ εὐδαίμονα. ἐνταῦθα Κύρῳ βασίλεια ἦν καὶ παράδεισος μέγας ἀγρίων θηρίων πλήρης, ἃ ἐκεῖνος ἐθήρευεν ἀπὸ ἵππου, ὁπότε γυμνάσαι βούλοιτο ἑαυτόν τε καὶ τοὺς ἵππους. διὰ μέσου δὲ τοῦ παραδείσου ῥεῖ ὁ Μαίανδρος ποταμός. αἱ δὲ πηγαὶ αὐτοῦ εἰσιν ἐκ τῶν βασιλείων. ῥεῖ δὲ καὶ διὰ τῆς Κελαινῶν πόλεως. ἔστι δὲ καὶ μεγάλου βασιλέως βασίλεια ἐν Κελαιναῖς ἐρυμνὰ ἐπὶ ταῖς πηγαῖς τοῦ Μαρσύου ποταμοῦ ὑπὸ τῇ ἀκροπόλει. ῥεῖ δὲ καὶ οὗτος διὰ τῆς πόλεως καὶ ἐμβάλλει εἰς τὸν Μαίανδρον. τοῦ δὲ Μαρσύου τὸ εὖρός ἐστιν εἴκοσι καὶ πέντε ποδῶν. ἐνταῦθα λέγεται Ἀπόλλων ἐκδεῖραι Μαρσύαν νικήσας ἐρίζοντά οἱ περὶ σοφίας, καὶ τὸ δέρμα κρεμάσαι ἐν τῷ ἄντρῳ ὅθεν αἱ πηγαί. διὰ δὲ τοῦτο ὁ ποταμὸς καλεῖται Μαρσύας. ἐνταῦθα Ξέρξης, ὅτε ἐκ τῆς Ἑλλάδος ἡττηθεὶς τῇ μάχῃ ἀπεχώρει, λέγεται οἰκοδομῆσαι ταῦτά τε τὰ βασίλεια καὶ τὴν Κελαινῶν ακρόπολιν.

1) Primeira versão da tradução:

Dali marcha por cinco dias e vinte parassangas até Celainas, cidade da Frígia, habitada, grande e afortunada. Ali, à disposição de Ciro, palácios reais havia e um bosque, cheio de feras selvagens, as quais aquele caçava a cavalo, quando desejasse treinar a si e a seus cavalos. Por entre o bosque, corre o rio Meandro; suas nascentes estão desde os palácios reais; corre também ele pela cidade de Celainas. Os palácios reais fortificados do grande basileu em Celainas estão sobre as nascentes do rio Mársyas, sob a acrópole. Corre esse também através da cidade e desemboca no Meandro. Do Mársyas, a largura é de vinte e cinco pés. Diz-se ali Apolo ter esfolado Mársyas, tendo vencido o desafiante quanto à sabedoria, e a pele ter lançado na caverna de onde as nascentes; por essa razão, o rio é chamado Mársyas. Ali diz-se Xérxes, quando, da Hélade, tendo sido derrotado em batalha, se retirava, ter edificado esses palácios reais e a acrópole de Celainas.

2) Segunda versão da tradução:

Dali parte [Ciro] em marcha por cinco dias e vinte parassangas até Celainas, cidade da Frígia, habitada, grande e próspera. Tinha ali Ciro, à sua disposição, palácios reais e um vasto bosque repleto de feras selvagens, as quais, sempre que desejasse exercitar-se a si e a seus cavalos, caçava em montaria. Pelo bosque, flui o rio Meandro, cujas nascentes brotam desde os palácios reais; flui também pela cidade de Celainas. Os palácios reais do grande basileu em Celainas erguem-se, ao pé da acrópole, sobre as nascentes do rio Mársyas. Esse rio, com uma largura de vinte e cinco pés, também flui através da cidade e desemboca no rio Meandro. Conta-se ali Apolo, após ter vencido seu desafiante Mársyas numa disputa acerca da sabedoria [musical], ter lhe arrancado a pele e a lançado na gruta de onde brotam as nascentes do rio: por isso, o rio é chamado Mársyas. Dizem também que Xérxes, quando retirava-se da Hélade, após ter sido derrotado na batalha, ali edificou os palácios reais e a acrópole de Celainas.

Sobre o exercício da tradução

O termo da língua portuguesa ‘traduzir’ vem do latino traducere, cujo sentido próprio é o de conduzir para o outro lado, fazer passar; fazer passar de um ponto a outro, transferir, atravessar, levar a. A partir desse primeiro sentido, passou o termo a indicar a atividade de se traduzir, de se verter um discurso feito em um idioma em outro.

O que ocorre na tradução em sentido linguístico é a passagem, é o transporte, o atravessamento de uma experiência humana expressa em uma determinada língua à expressão dessa mesma experiência já em uma outra língua. O trabalho do tradutor, logo, é o de levar a experiência humana através do limiar linguístico que distingue uma cultura humana da outra e o de fazer com que aquela experiência originária possa encontrar os meios linguísticos adequados para que surja, pela expressão linguística, preservada o mais fielmente possível, em outro idioma, em outro mundo cultural.

Há tradições de estudos linguísticos e filológicos em que a tradução feita é chamada de paráfrase ou versão do texto original. Com toda a razão pode isso ser assim considerado, pois aquele que deve verter um texto para outra língua não estaria por buscar simplesmente e apenas o vocábulo correspondente, o sinônimo do termo utilizado em uma língua diferente, sabendo que deve compor um texto em que venha expressa a experiência humana através do ferramental de que outro sistema linguístico dispõe. A paráfrase ou a versão demanda o saber quanto à maneira em que a língua alvo é capaz de expressar aquilo que o autor compôs através de sua própria língua no texto original. Não haveria a exata equivalência entre os vocábulos de línguas diferentes. E, por conta das condições culturais do surgimento de expressões idiomáticas, provérbios, modos de dizer serem diferentes para cada comunidade linguística, é necessário que sejam buscados não os meros vocábulos sinônimos nem que seja feita a tradução tão-somente literal da expressão composta, mas que seja almejado que aquelas construções, como são ditas em um determinado ambiente cultural, possam ser ditas de maneira que a ideia literária do autor seja transmitida com o mesmo efeito expressivo, então já em outro ambiente cultural. Além disso, precisa-se compreender o tom do texto original, o estilo da obra e assim conseguir imprimi-los na tradução. Se o é informal ou formal, que a tradução saia em tom de informalidade ou de formalidade. Caso seja científico ou prosaico, se nobre ou vil, se ágil ou vagaroso, assim proceda o tradutor no afinar a sua produção.

Nesse sentido, a tradução é também um excelente exercício para o desenvolvimento do conhecimento linguístico, seja de uma língua estrangeira, seja da própria língua materna. Porquanto, através do exercícios, eventuais incompreensões, ocasionais dificuldades e lacunas no aprendizado podem ser evidenciadas. Por mais que na simples leitura de um texto possam surgir também dúvidas quanto a tal ou qual passagem, será sobretudo na tentativa de se buscar o meio mais adequado de expressão em uma outra língua daquilo que foi dito em outro idioma que tornar-se praticamente impossível escamotear as eventuais incompreensões linguísticas e passar-se adiante na leitura do texto. Ao fixarmos nossa atenção nas nuances do que está escrito, concentramos-nos em cada pormenor da composição, nos conceitos e nas ideias expostas, nos vocábulos escolhidos pelo autor para expressar com precisão o que desejava expressar.

A Psicolinguística desenvolveu dois conceitos para indicar modos que acabam sendo praticados durante a leitura: a leitura top down e a leitura bottom up. Caso o leitor tenha um bom domínio da língua em que vem escrito o texto, a leitura corre de maneira mais escorreita e como que de cima, de modo panorâmico, pela qual, até mesmo, os termos conseguintes podem ser quase que adivinhados. Quando o leitor, no entanto, depara algum trecho cuja leitura não flui com facilidade, seja pela complexidade da estrutura frasal ou da raridade dos vocábulos empregados, seja pelo fato de a língua estrangeira ainda não estar bem absorvida, sucede o tipo de leitura em que cada um dos elementos serão analisados vez por vez, desde o mais básico até as estruturas mais complexas, até que o todo venha a aparecer esclarecido ao final. Eventualmente, numa leitura, tanto para o estudo quanto para uma tradução, a modo de estudo da língua estrangeira ou da língua materna, esses tipos de leitura podem vir a ocorrer.

Assim, para além do exercício de expressão linguística, surge a experiência de aprofundamento do conhecimento do próprio conteúdo do texto. Cada vocábulo passa a ser visto na gravidade de seu sentido, a razão de ser de cada estrutura passa a ser contemplada como o modo de expressão mais adequado daquela experiência que o autor quis contar. Os termos, os vocábulos, as construções frasais ganham a concretude mais detida da habilidade humana de compor literatura. Podem surgir daí, por conseguinte, análises mais aprofundadas de cada trecho, cada vocábulo, de cada construção que podem, por sua vez, desdobrar-se em ainda outros textos, em outras composições literárias.

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