Sócrates e o caminho da filosofia

FILOSOFIA

Pedro Fonseca Tenorio

6/1/20246 min read

"É a pergunta para qualquer um, para a humanidade inteira. Para onde você vai, tendo até aqui percorrido todo esse caminho? Sócrates, no mesmo diálogo, não nos deixa sós. Ele indica a ascensão pela Filosofia à planície da sabedoria. Restará a cada um de nós decidirmos por tomar ou não esse caminho da Filosofia."

O diálogo Ἐυθύφρων, de Platão, começa com uma saudação de Eutífron à Sócrates: Τί νεώτερον, ὦ Σώκρατες, γέγονεν,…. - “o que de mais novo aconteceu, ó Sócrates,…?” A saudação guardava a surpresa que o jovem revelou ao ver o filósofo perambulando por um lugar a ele todo incongruente: “...ὅτι σὺ τὰς ἐν Λυκεὶῳ καταλιπὼν διατριβὰς ἐνθάδε διατρίβεις περὶ τὴν τοῦ βασιλέως στοάν;” (Platão, Ἐυθύφρων, 2a 1-3) - “... que tu, tendo abandonado as conversas no Liceu, agora perambulas por aqui diante do pórtico do basileu?”. A disposição de Sócrates para a conversa filosófica e amistosa ficou proverbialmente conhecida. Pois ele encontrava-se frequentemente por Atenas, de peito aberto, sempre disposto a conversar com qualquer um sobre os mais diversos temas; não apenas de graça, mas com gosto, com que desejasse ouvi-lo.

Perante o basileu, em seu pórtico, iriam aqueles que teriam algum problema com a justiça para ser resolvido. Ou alguém iria até lá para prestar alguma queixa, para fazer alguma denúncia contra alguém; ou alguém comparecia ao pórtico do basileu para receber uma denúncia, para inteirar-se de uma queixa, de alguma acusação que outro lhe houvera feito.

Eutífron, comparecendo ali para mover uma ação contra seu próprio pai, supunha que Sócrates não poderia estar ali para também prestar queixas contra alguém. Isso, simplesmente, não condizia com o Sócrates que ele conhecia. Na verdade, Sócrates estava ali para tomar conhecimento da queixa que haviam feito contra ele. Sócrates estava sendo indiciado por corromper os jovens. Tal qual um bom agricultor arranca as ervas daninhas do campo para preservar a plantação saudável, seu denunciante almejava extirpar Sócrates da vida ateniense.

A denúncia pegou de surpresa os discípulos, os alunos e os amigos de Sócrates, que acorreram nos últimos momentos de vida para escutar a lição final do mestre. Para os pósteros, à luz da situação de decadência da sociedade ateniense, a denúncia, a condenação e a morte do filósofo, tornou-se compreensível. Com a Guerra do Peloponeso, irmãos da Hélade se bateram e destruíram-se mutuamente. Na democracia ateniense, havia já o pulular de políticos demagogos dispostos a ludibriar a população. A barafunda linguística e argumentativa promovida pela sofística intensificava-se e uma série de teorias meio filosóficas, meio religiosas de pensadores de várias regiões do mundo surgia. Nisso tudo, a confusão intelectual e moral propagava-se entre as pessoas. A preocupação pela corrupção dos jovens feita na acusação poderia apenas ser alimentada por alguém que não compreendia verdadeiramente a atividade filosófica iluminadora que Sócrates realizava. Pois era Sócrates a grande novidade que apareceu para a época e, no fundo, para o espírito humano de todas as épocas. Nada mais estranho e adverso ao estado de confusão do que a atividade de alguém que buscasse recuperar o eixo intelectual e moral que desaparecera.

Numa passagem de A República, o homem, que por primeiro se soltou das amarras que o prendiam no fundo da caverna, apanhou de seus antigos companheiros quando tentou voltar para ajudá-los em seu resgate. Aqueles que permaneciam no fundo opressivo da escuridão não poderiam compreender a luz ofuscante que lhes era portada por aquele que pôde ver a verdade resplandecente de fora da caverna. Sócrates tentou realizar essa mesma atividade, por φιλανθρωπία, por amor aos concidadãos, por ser o justo e sábio.

A primeira frase de A República anuncia como um tema geral da obra o movimento de descida que a alegoria da caverna ilustrará: “Κατέβην χθές εἰς Πειραῖα…” (Platão, Πολιτεία, 327a 1) - “Desci ontem ao Pireu…”. Sócrates desce ao Pireu para realizar preces aos deuses e, depois, ao retornar à Atenas, desenvolve as discussões filosóficas sobre a Justiça, sobre os moldes e os destinos de uma cidade, sobre estrutura da alma humana, sobre como o ser humano pode vir a conhecer os princípios da realidade e, como o ápice da discussão, sobre o bem supremo. O movimento de descida ao porto ateniense e, depois, a volta para a cidade, configura o movimento anímico ascensional que a alma humana percorre para alcançar o conhecimento do que há de melhor na realidade, desde o burburinho e movimentação das contingências até aquilo que é supremo, eterno e imutável. Alguém apenas poderia discutir esses temas, da maneira como Sócrates o fez, depois de ter tido o vislumbre do objeto da discussão, de já ter visto a luz do sol de fora da caverna escura.

Mas, após a condenação de Sócrates, pode-se perceber que o Pireu não era apenas o porto vizinho a Atenas. A própria cidade, capital cultural da Grécia, estava já tornando-se o ponto final da descida. Sócrates tentou apresentar a todos não apenas a luz do que lhe havia sido mostrado, mas, sobretudo, a postura adequada perante o verdadeiro e, embora o tenha conseguido apenas com alguns de seus amigos, acabou sendo condenado a tomar a cicuta na masmorra.

O tema da κατάβασις não é único de Sócrates. Odysseus também fez uma descida ao Hades para tentar descobrir com os mortos um melhor meio para escapar para casa. Dante desceu ao Inferno, guiado por Virgílio, que o conduziu por cada um dos círculos infernais. Odysseus conseguiu as indicações de que precisava e encontrou o caminho para Ítaca. Dante saiu do Inferno, passou pelo Purgatório e conheceu, guiado por Beatriz e, depois, por São Bernardo, o Paraíso. Xenofonte descreveu, ao final da ανάβασις, todo o maravilhamento que o exército estropiado e desesperançoso experienciou quando viu novamente o mar, o caminho para casa depois da κατάβασις pelo deserto oriental: θάλαττα θάλαττα.

A κατάβασις de Sócrates tem também esse aspecto, individualmente, ao querer descobrir-se a si mesmo. Quando, certa vez, alguém lhe disse que a revelação do oráculo foi de que ele era o homem mais sábio de todos, Sócrates empreendeu a atividade mais nobre: tirar a limpo essa mensagem. Sabendo não ter o oráculo um sentido literal e acreditando não ser o mais sábio dos homens, quis compreender que sentido tinha a mensagem revelada. Dedicando-se inteiramente a isso, respondendo à conjuração délfica γνῶθι σαυτόν - conhece-te a ti mesmo - e à mensagem da pitonisa, Sócrates investiga-se na profundidade de sua alma para descobrir quem é esse que é tido como o mais sábio dos homens. Do que foi apreendido, do que foi discernido, pôde, logo, realizar as διατριβαί filosóficas com os atenienses no modo como conhecemos pelos diálogos platônicos, indagando não exatamente por tópicos e argumentos filosóficos. Antes, Sócrates estimulava a cada um que conseguisse, num rastreio profundo de seu próprio ser, num indagar aquilo que, de certa forma, se soubesse, e que o fizesse a partir de suas experiências diretas e pessoais, a verdade das coisas. Sócrates quer que aquelas pessoas com quem dialoga consigam também fazer o movimento de aprofundamento pessoal e descubram num mesmo relance a verdade buscada no tema da conversa pelo discernimento da verdade existencial.

A grande novidade de Sócrates, o τί νεώτερον, ὦ Σώκρατες, γέγονεν foi sobretudo, a exigência da postura correta para o conhecimento da verdade. As investigações sobre a verdade das coisas e, mais do que todas, a investigação filosófica, exige da pessoa a mobilização completa de sua existência. Cada tema pesquisado, cada objeto indagado, cada situação inquirida terá apenas sua verdade alcançada, segundo o sentido novo socrático, agora o sentido pleno de Filosofia, na disposição completa do ser do filósofo.

A exigência é grande, no entanto. A nova perspectiva socrática expande à humanidade horizontes intelectuais e existenciais que antes não haviam sido apresentados. Mas a filosofia é mesmo uma escolha de vida e uma das mais graves. Sócrates sabia disso; e a pergunta que ele faz a Fedro no diálogo homônimo, bem coloca a alternativa como uma decisão de encruzilhada por qual caminho deseja-se andar: "Ὦ φίλε Φαῖδρε, ποῖ καὶ πόθέν; “ (Platão, Φαῖδρος, 227a 1) - "Ó caro Fedro, de onde e para onde?”. É a pergunta para qualquer um, para a humanidade inteira. Para onde você vai, tendo até aqui percorrido todo esse caminho? Sócrates, no mesmo diálogo, não nos deixa sós. Ele indica a ascensão pela Filosofia à planície da sabedoria. Restará a cada um de nós decidirmos por tomar ou não esse caminho da Filosofia.

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