O Albatroz e o destino de uma família
LITERATURA


O Albatroz, escrito por José Geraldo Vieira e publicado em 1951, nos conta a saga de uma família carioca, que se fez e se desfez num prazo de quatro gerações, em cerca de 60 anos, três delas embalsamadas nas águas do Atlântico e uma sepultada no velho continente.
O Albatroz, escrito por José Geraldo Vieira e publicado em 1951, nos conta a saga de uma família carioca, que se fez e se desfez num prazo de quatro gerações, em cerca de 60 anos, três delas embalsamadas nas águas do Atlântico e uma sepultada no velho continente. A sombra de um mausoléu inocupado permanece por todo o livro como marco das tragédias que foram se sucedendo aos homens da família, lembrando a irônica verdade de que nenhum dos oito sarcófagos, encomendados pelo coronel Aleixo Cintra e esculpidos pelo velho Tronchi, viriam jamais a ser ocupados. A tragédia é cruel e implacável, sobretudo à Virgínia, a esposa de Arthur, filho do coronel, que viu sua família se constituir e se liquefazer rapidamente.
Depois da morte do pai Aleixo, Arthur foi pelos ares na explosão do navio de guerra no qual embarcou, deixando órfão o filho Carlos. Carlos teve com Emília o único membro da quarta geração dos Cintra, Fernando. Todos os quatro morreram longe de casa, não podendo ser enterrados no cemitério São João Batista. Suas mortes foram comprimindo o coração de Virgínia na dor do luto, deixando como sua última esperança de preservação de linhagem a sobrevivência do neto. Não conseguiu.
A história do livro é, no fundo, a composição de uma espécie de tragédia provocada pela tentativa de Virgínia em controlar o destino de seu neto Fernando. Uma espécie de tragédia pois nela não há nenhuma desmesura, nenhum ato de soberba consciente, exercido por um grande personagem em plena convicção dos resultados desejados. Ao contrário, o que vemos no livro, desde seu início, são personagens que não se encontram propriamente com sua verdade, não têm um conhecimento de suas origens, não se realizam plenamente, confundem-se e se enlouquecem na vida. Personagens quase inocentes, levados pelo ondejar da vida. O coronel Aleixo ficava entre sua função militar e seus estudos geométricos. Arthur era um militar brincalhão e de espírito dionisíaco não tão concorde com seu afazer profissional. Carlos, com a morte de Emília, perdeu-se na loucura nietzschiana e juntou-se à Coluna revolucionária.
Somente Virgínia conseguiu vislumbrar o que era a família Cintra e anteviu o destino tremendo de seu neto. Ela era a única que tinha de fato uma preparação cultural para isso. Seu espírito pôde alçar-se um pouco acima da inconsciência, ainda que não o suficiente para compreender os princípios da realidade e não deixar-se cair na tentação trágica de querer controlar seu destino.
O livro é dividido em duas partes. Somente no final da segunda parte, já muito tarde, Virgínia e Fernando, mas sobretudo Virgínia, parecem ter compreendido finalmente qual é o destino que os esperava. Não que essa sabedoria fosse qualquer tipo de adivinhação do futuro. O que se fazia evidente para Virgínia era o traçado, a configuração das gerações, que deveria culminar na realização da vida de Fernando de maneira que encerrasse o movimento pendular da linhagem dos Cintra na geração de caracteres contrapostos e complementares, rearranjados no elemento unificador da guerra. Virgínia tentou criar Fernando numa extraterritorialidade da mansão do Joá e na mais alta cultura, buscando impedir assim que o bisneto caísse nas mesmas malhas funestas em que seus antepassados haviam caído. Mas a μοῖρα, o destino da linhagem dos Cintra, não poderia ser anulado, extirpado de um γένος, neutralizado de forma alguma por nenhum ser humano. Pela força coercitiva da natureza na exigência de realização de sua potência, a μοῖρα à guerra convocaria Fernando, intimando-o a completar seu destino.
O resultado, porém, foi que o algoritmo abstrato em que Fernando tornou-se, a plainar por sobre o mundo das circunstâncias, por sobre o turbamento e a agitação dos mares, fazia-o presa fácil, desajeitada e desprotegida, menos safa e mais inocente. Fernando era o albatroz do poema, preso e caçoado pelos marujos de convés. Numa empresa da FEB de tentativa de tomada do Monte Castello, Fernando foi alvo de uma saraivada de balas de metralhadora e jazeu no terreno lamacento por alguns dias, sem que soubessem onde apodrecia. Juntada a sua inépcia guerreira, cultivada no Ponta do Marisco, e o poder das μοῖραι, que o foram buscar, o lance mortal na campanha de guerra foi a tragédia da família Cintra ao final história.
Enquanto a guerra ocorria na Itália, do promontório da mansão construída sobre rochedo litorâneo, guardando o azul denso e infinito do mar Atlântico, Dona Virgínia, ao velar em dor o fado trágico de seu neto Fernando, o último remanescente da linhagem dos Cintra, lembra-nos Hécuba, a matriarca troiana, que das antigas amuradas de Ílion, contemplando Heitor na refrega terrível contra Aquiles, podia apenas prantear o destino implacável de seu amado filho, derrotado pelas mãos do inimigo aqueu. Porém, enquanto Hécuba era rainha de linhagem divina, esposa de Príamo, mãe de Heitor, baluarte de Tróia na guerra épica e ancestral cantada por Homero, Virgínia não era uma figura mitológica, os seus não nasceram da terra nutriz de guerreiros, não pertencia ela à progênie de nenhum deus, não esposou nenhum heroi. Virgínia era uma brasileira, vivia no século XX, era filha de um médico na capital da República, casada com um jovem militar e habitante do Rio de Janeiro. Não há nela, nem em Fernando, nem em ninguém da família Gama e Cintra, a gravidade de uma verdadeira tragédia, a culpa pesante sobre o heroi soberbo. A linha da desmedida foi até ultrapassada por Virgínia devido a arrogância, mas sobretudo por uma arrogância de acumulada inconsciência, ignorância, incultura, falta de conhecimento verdadeiro, já ancestral de nossa terra, do Rio de Janeiro, do Brasil.
A discrepância entre as verdadeiras tragédias, completas, e a tragédia dos Cintra é simbolicamente representada pelo caso do Mausoléu inútil. Escolhido pelo velho Tronchi para resolver uma discordância entre o coronel Aleixo e sua mulher, o Mausoléu era a cópia da tumba de um discípulo de Arquimedes na antiga Sicília, quando essa ainda era colônia grega. A cópia transferida para o Rio de Janeiro e nunca ocupada, realizada a partir da foto de livro, é a imagem da incongruência entre a herança trágica grega, do alto conhecimento milenar da realidade humana, e a situação meio barro meio tijolo da vida espiritual e cultural aqui no Brasil. Porque aqui, por ainda não se ter herdado verdadeiramente a sabedoria e de sermos recém partícipes da vida espiritual da humanidade, a culpa dos personagens é amenizada, sua soberba não é tão profunda, eles sofrem quase inocentemente.