César Birotteau e a nobre decadência

LITERATURA

Pedro Fonseca Tenorio

5/23/20246 min read

O universo, porém, não se resume à dimensão terrestre. Transcendente à materialidade, o infinito Bem, que é Deus, tudo observa, desejoso de que os homens, da turva materialidade, despertem em seus corações para Ele, libertem-se da tenebrosa e mesquinha que é a vida longe Dele. O meio pelo qual César Birotteau despertou para algo que transcendia a materialidade da vida burguesa e que o tio Popinot reconhecia foi a sua falência: “Ele só podia engrandecer-se pela desgraça.

Balzac conta-nos a história de César Birotteau, de sua grandeur et décadence, isto é, de como César foi grandioso na desgraça financeira em que havia sido lançado. O interesse da obra não é apresentar em detalhes como o jovem César, tendo chegado a Paris vindo do campo, conseguiu fazer a sua fortuna e, depois, explicar como teria conseguido ele perder tudo o que havia conquistado como comerciante de perfumes. Caso tivesse sido essa a história pela qual Balzac tivesse se interessado em nos contar, possivelmente aquilo que tivesse vindo a ser o conteúdo principal do livro não seria algo muito diferente de um relato sobre as peripécias pelas quais um homem simples conseguiu passar, sobre seu enriquecimento e, depois, acerca de como, o mesmo homem, usufruindo de maneira exagerada de sua fortuna, enfiando os pés pelas mãos na gastança e nos investimentos mal calculados, conseguiu cair em falência. Teria sido essa mais uma entre as muitas histórias que aconteceram em Paris. O caso de César Birotteau, no entanto, tem algo de diferente e superior a esses casos de sucesso e derrota parisienses.

Após ter erigido a sua grande obra pessoal de comerciante, o sucesso da perfumaria Rainha das Rosas, a notícia de que seria condecorado com a cruz da Legião de Honra, inflamou as ideias do velho burguês de conseguir subir ao andar de cima da sociedade parisiense. Para a comemoração, imaginava celebrar em um grande baile uma espécie de festa de debutantes na alta burguesia da cidade. Sabia até como ocorreria a celebração: anunciaria o lançamento no mercado de um novo cosmético pela sua perfumaria para a expansão dos negócios, lucraria com a valorização dos terrenos que viria a comprar numa região nas vizinhanças de Paris e seria apresentado como o novo cavaleiro da Legião de Honra, cuja condecoração cairia como o reconhecimento da prova de lealdade ao rei de França, da probidade e da competência de seu trabalho de juiz do comércio, merecida do novo vice-prefeito de um distrito da cidade.

Na noite em que César fazia, com toda a empolgação permitida, as medições no apartamento que deveria ser ampliado e redecorado para fazer jus à futura posição que viria a adquirir como membro da Legião de Honra, Constance, sua mulher, acordou desesperada de um pesadelo no qual, tal como uma Cassandra rediviva, previa a desgraça futura da família. Surpresa com a atividade noturna do marido, a qual endossava sua profecia onírica, a mulher tentou dissuadir os planos da grandeza de seu esposo. A senhora Constance conhecia a natureza, o temperamento e a formação do senhor Birotteau. O sonho não era apenas profético. Ele seguia os cálculos inconscientes de uma esposa que estava no mundo com os dois pés na realidade. Pois César queria ascender socialmente sem que tivesse o preparo e a disposição de realizar tudo o que seria necessário para, primeiramente, entrar na alta sociedade e, depois, para nela permanecer .

Na verdade, César Birotteau, apesar do conhecimento que tinha sobre todas as miudezas do comércio, de como fazer dinheiro, prevendo os maiores sucessos comerciais, realizando tudo com a mais íntegra honestidade, era ainda um homem obtuso, rude e bronco para compreender a realidade. Homem de coração bom e honesto, pai e marido amoroso, era, no entanto, ríspido e duro com aqueles que o deviam, de maneira a parecer fazer as coisas mais por instinto do que por cultura de alma. Monarquista desde jovem, tendo lutado contra a revolução liberal, seu espírito conservou-se íntegro e aberto àquilo que mantém a alma humana longe da perdição total.

Não obstante, foi por essa fresta da ignorância e da ingenuidade por onde a serpente du Tillet conseguiu embrenhar-se com um esquema fraudulento de vingança e fortuna fácil na vida de Birotteau. Aproveitando-se do anseio de César de ascender socialmente, Du Tillet arquitetou um plano e levou-o à cabo com o senhor Roguin e outros comparsas, com o qual sugeriu ao comerciante um investimento funesto. Sem dar-se conta da tramoia e confiando na lisura de seus conhecidos, César Birotteau mergulhou de cabeça nas mirabolantes estratégias que, supostamente, o levariam à glória social. Mas, antes, jogou-o na falência.

Birotteau, incapaz de analisar adequadamente seus futuros sócios, por inocência e confiança em seus amigos, acabou por cair na artimanha demoníaca de seu antigo empregado e foi lançado na total desgraça financeira que jamais teria imaginado. Mas Deus não permitiria o mal se dele não pudesse tirar algum bem. E o que, de um ponto de vista material, foi a derrota de Birotteau, foi, do ponto de vista espiritual, o meio para a sua verdadeira ascensão.

Obrigado a resolver seu problema financeiro, humilhado pelos credores e oprimido pela impossibilidade de sanar suas dívidas, César passou seus dias tentando reerguer-se da queda. Buscava aqui e ali as ajudas, os empréstimos, os votos de confiança e os meios que lhe dariam a oportunidade de se reabilitar no mercado parisiense e de reconstruir a sua vida. Mas nada dava certo.

Quando, estando já nas últimas, num dia em que os amigos se juntavam para ajudá-lo, indo Popinot e o tio Pilleraut fazer o balanço de suas dívidas, o senhor Birotteau ajoelhou-se ao chão e rezou o Pater Noster. Com a oração, pareceu que a catástrofe começava a se resolver. Confluindo também aos esforços, finalmente a resposta do irmão de César chegou e, ao invés da soma de dinheiro esperada, a carta abençoava a família Birotteau com a mais preciosa prece do sacerdote. Foi então que César despertou, reconhecendo que: “Sonhei durante 22 anos e agora desperto, com meu cajado na mão”. Finalmente, tomava ele pé da realidade, despertava para a vida, abrindo-se agora para realizar aquilo que lhe seria necessário fazer, não só como burguês, mas, sobretudo, como homem merecedor de dignidade e respeito, senhor de si mesmo e abnegado virtuoso da glória e da honra. O momento iluminante demoveu aquele turbamento patológico de Birotteau da frustração da falência, da perda do patrimônio e do sonho aniquilado de ascensão social. Tendo despertado para a realidade, as forças de Birotteau seriam vertidas na recuperação de sua honra, na manutenção de sua família e na recuperação da sua estimada honestidade. César havia se tornado agora uma pessoa, César Birotteau.

Assim aconteceu a história de César Birotteau. Ele conseguiu recuperar-se financeiramente, manteve a família, a qual amadureceu e amou-se ainda mais durante o empenho do trabalho, e descobriu a tramoia que o havia derrubado. Mas o mais importante foi ter-se tornado o exemplo de honestidade em Paris, ter conseguido alcançar glória superior àquela que desejava obter com seus antigos planos. Até que, no mesmo dia em que havia se restabelecido e recuperado tudo o que perdera, morreu.

Todavia, é preciso não nos iludirmos com o caso Birotteau. César havia acreditado ser a sociedade o juiz de sua ascensão. Não havia ele percebido que o único meio verdadeiro de verdadeira elevação, de grandeur, é o espiritual, que vem com a graça de Deus, depois de muito se caminhar sob a cruz que lhe é devida. O período em que suportou a desgraça da falência foi a paixão redentora adequada à Birotteau. Pois, para além da cidade dos homens, Birotteau não tinha presente a existência da cidade de Deus. Ele era católico, seu irmão era padre em Tours, lhe era bem próximo o abade Loraux, mas era também um comerciante burguês de uma Paris já revolucionada, tornada liberal em seus costumes e expectativas, diminuída em sua abertura espiritual. A revolução que tomou a França de Liberalismo não foi inócua. Com ela iniciou a empedernir-se o coração humano. As ordens da ações, os objetivos, as vontades e os desejos, a finalidade da vida convergiam apenas no nível material da existência humana, no qual a sociedade, e a alta sociedade, é o que há de mais elevado de realização humana. O universo, porém, não se resume à dimensão terrestre. Transcendente à materialidade, o infinito Bem, que é Deus, tudo observa, desejoso de que os homens, da turva materialidade, despertem em seus corações para Ele, libertem-se da tenebrosa e mesquinha que é a vida longe Dele. O meio pelo qual César Birotteau despertou para algo que transcendia a materialidade da vida burguesa e que o tio Popinot reconhecia foi a sua falência: “Ele só podia engrandecer-se pela desgraça”.

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